Resenha crítica sobre o filme "Sombras de Goya"

Por Fernando Bezerril de Araújo Neto
Pesquisador do GESTO
02/10/2015, Natal/RN




RESENHA CRÍTICA SOBRE O FILME “SOMBRAS DE GOYA”

Goya’s Ghosts ou, em português, Sombras de Goya é um filme biográfico da vida do pintor Francisco de Goya (1746-1828) dirigido pelo cineasta tcheco Milos Forman, com roteiro do escritor francês Jean-Claude Carrière e com participação de atores de Holywood, tais como Natalie Portman, Javier Bardem e Stellan Skargard.

O drama busca retratar a preferência que grandes monarcas e certas autoridades do clero do final do século XVIII e início do século XIX tinham pelo talento artístico de Goya, perpassando a transição por entre o absolutismo monárquico, representado na figura do rei Carlos e da rainha Maria Luísa, e o iluminismo europeu, encarnado em um movimento cultural que buscava romper com os esteios do antigo regime.

O filme inicia a história exibindo uma reunião do Santo Ofício da Inquisição, em Madrid, onde as autoridades inquisitoriais presentes debruçavam-se sobre perturbadores ilustrações de Goya que retratavam o choque de valores entre o que a fé católica representava e os arcaicos costumes adotados pela igreja.

A condenação de Goya à fogueira era iminente quando, porém, o padre Lorenzo – que havia lhes encomendando um retrato – decide intervir em sua defesa, alegando que inflamar aqueles trabalhos não faria cessar a existência dos hereges contrários aos dogmas da igreja católica ali retratados, a cujos esforços deveriam convergir os ofícios empreendidos por aquele tribunal. Pelo contrário, queimar o sincero artista seria como declarar a impunidade de homens e mulheres devotos ao pecado, olvidando-se quais seriam os verdadeiros culpados.

Disto, decidem reempregar a temência a deus enquanto método de profetização da fé católica por intermédio dos antigos “costumes” inquisitórios, utilizando-se de medidas das mais radicais até então adotadas para subtrair, de prováveis inocentes, a confissão de heresia.

Naquela seara, a confissão era equivalente à sentença de morte a ser adotada pelo tribunal e bastava, por si só, para justificar os meios empregados, elegendo-se, dentre estes, na massiva maioria dos casos, da violação à integridade física do acusado.

Deveras, a busca pela verdade nestes processos era o único fim desejado, e este ganhava contornos sagrados quando atrelado à própria figura de deus, legitimando, pois, a nefasta prática da tortura em detrimento da unidade pessoal do inquirido, a quem não era garantido substanciais possibilidades de defesa. Uma vez submetido a julgamento, ou confessava algo que não havia realizado para obter perdão divino e ser submetido à fogueira com piedade, ou não o fazia, declarando franqueza na exposição dos fatos, para, ainda assim, ser sujeitado ao ardor das chamas. Dessa forma, diante da ineficiência do Tribunal em provar a prática de heresia, conveniente mesmo era subtrair de seus depoentes a confissão.

Sem embargo, no longínquo século XVIII, importantes vozes da doutrina clássica criminal já se posicionavam contra a prática da tortura, tendo, dentre seus expoentes, Cesare Beccaria (2003, p. 43) ilustrado a situação da seguinte forma:

Direi mais que é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar que a verdade nasça através de tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é a que afirma: “Homens, resisti à dor. A natureza dotou-vos com um amor imbatível ao vosso ser, e o direito indeclinável de vos defenderdes; porém, eu desejo criar em vós um sentimento totalmente diverso; quero inspirar-vos um ódio a vós mesmos; ordeno-vos que sejais vossos próprios acusadores e finalmente digais a verdade em meio a torturas que vos partirão os ossos e dilacerarão os vossos músculos”. (BECCARIA, 2003, p. 43).

Em sequência, o próprio padre Lorenzo se viu designado para liderar as investigações e caça daqueles considerados hereges, ingressando em momento crucial da obra cinematográfica, quando dois agentes da inquisição indiciaram a jovem Inês, filha de um rico comerciante local cuja imagem delineava-se, coincidentemente, em um dos retratos de Goya, na prática heterodoxa do judaísmo por recusar alimentar-se do porco servido em uma taverna local.

Notificado pelo Santo Ofício e sem entender do que se tratava, o pai da garota encaminhara sua filha para se apresentar naquele tribunal. Após dias sem notícia do que havia sucedido, suplicara a intervenção de Goya perante a Inquisição, conseguindo, então, uma audiência com o padre Lorenzo em sua casa.

Sem demora, os anfitriões logo indagaram-no sobre o estado de Inês, revelando o sacerdote que a jovem havia confessado, quando submetida ao “inquérito”, a prática de costumes judaicos. Diante de tal cenário, o obstinado pai decide pôr à prova a eficácia de tais métodos da Inquisição, submetendo o padre Lorenzo à prática de tortura para retirar-lhes confissão de infidelidade aos dogmas da igreja católica.

Logo, o acanhado clérigo se vê chantageado a libertar a moça para não ter de enfrentar o julgamento ardente daqueles a quem outrora aconselhava. E entre uma coisa e outra, decide visitar a coitada garota, abusando-a sexualmente. Contudo, o veredicto sobrepujado à confissão herege não podia ser perdoado, senão pela chama intensa da fogueira. Assim, o destino de ambos restara condenado. Um, à crueldade selvagem de homens desarrazoados cujas ações eram justificadas na existência de uma suposta vontade celeste, e ao outro, se não desejasse o mesmo fardo, o exílio.

Tanto dito, quanto feito, o sacerdote escapou do seu castigo, voltando, algum tempo depois, com o exército de Napoleão Bonaparte e os ideais da revolução francesa. Estes, de sua vez, jungidos sob o veredicto da liberdade, da fraternidade e da solidariedade reprovavam a antiga praxe inquisitorial do Santo Ofício e libertaram todos os prisioneiros que tal tribunal havia feito.

REFERÊNCIAS

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2003. 160 p. (Biblioteca clássica).

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