Como confiar nas estatísticas
atualmente, num mundo em que a maquiagem da realidade representa somente
a realidade da maquiagem?
Não se pode jogar na
lata do lixo todas as pesquisas e estatísticas e nem se deve chegar as
generalizações que opacificam a distinção entre o joio e o trigo, mas isso não
autoriza dispensar o imprescindível estranhamento em relação aos números e
dados produzidos pelos institutos de
pesquisas, principalmente porque, como adverte Joel Best, autor do livro Uso e abuso das estatísticas, vivemos
num mundo cada vez anumérico, ou seja, no qual as pessoas evitam questionar, contextualizar ou compreender as cifras, tabelas, dados e continuam carentes de alfabetização estatísica.
Ter uma atitude de
suspeição epistemológica em relação às estatísticas é indispensável para se
combater a pós-verdade, termo utilizado para descrever a conduta que prefere a
versão sobre o fato como mais importante do que o próprio fato.
A autoridade dos números
tem sido uma forma desonesta de negar a verdade e de esconder a sua essência ou negar a sua “existência
social”. Parte do que se produziu na política neoliberal, lastreado em estatísticas, tem sido uma forma
abalizada de “mentir cientificamente” e de se difundir uma “falsidade com invólucro
de verdade”.
Sob o neoliberalismo, os números se tornaram meramente uma espécie de roupagem, em
que vale mais a grife ou a autoridade do “órgão ou instituto imparcial” de pesquisa
do que a realidade que é mascarada por trás das estatísticas.
O neoliberalismo abusa do velho chavão de que “os números falam por si”. Na realidade, os
números que interessam à economia neoliberal hoje falam menos de si e muito mais de quem os utilizam ou tiram proveito
deles. Um político mineiro disse certa vez que, a depender do contexto de decadência da democracia, as estatísticas podem ser comparadas a presos
políticos, se elas forem torturadas elas confessam aquilo que os torturadores
querem ouvir como verdade.
A mais recente vítima
das estatísticas é o INE - Instituto Nacional de Estadísticas do Chile. Neste país se verifica um PIB
(Produto Interno Bruto) alto, um elevado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)
e uma brutal desigualdade social que se expressa na miséria, nas altas taxas de
exclusão social e nos preocupantes índices de depressão e suicídio na população.
O chileno Guilhermo Pattillo, diretor
do INE, revelou que em 2018 mais de 600 preços de produtos chegaram a ser
manipulados. Pattillo, em entrevista ao site mercopress, da Espanha, confessou ter existido a manipulação de vários cálculos,
inclusive em relação ao IPC – (Índice de preços ao consumidor).
Mesmo antes de a
população chilena tomar conhecimento da manipulação dos índices da economia,
tornou-se clichê dizer que a crise do Chile é uma tragédia anunciada, em razão
do fracasso do neoliberalismo para lidar com as desigualdades. Todavia, a crise maior do Chile não é somente
a débâcle de um modelo econômico, é sobretudo a falta de confiança de quem
dirige o Estado por meio de mentiras, cinismo, falta de escrúpulos e
irresponsabilidade, jogando literalmente a democracia às urtigas.
A tradição de manipulação
dos números no Chile também não é novidade, visto que se trata de uma pratica
histórica disseminada desde o governo do ditador Pinochet. O caso das estatísticas chilenas é uma
comprovação de que a metodologia envolve arbítrio e tende a mascarar intenções
não manifestas. Com efeito, a denúncia dessa manipulação do método, a exemplo
do que ocorreu no Chile, é algo que foi objeto das preocupações do escritor
escocês Darrel Huff, autor do best seller "Como mentir com
estatística". Igualmente preocupado com as imposturas, o político britânico
Benjamim Disraeli dizia que os números preocupam quando são utilizados para enxergar um retrato,
e não para se retratar o que se enxerga. Disraeli afirmava ainda que existiem três mentiras: a venial
ou bestial, a grande mentira ou mentira prejudicial e a mais ardilosa e trágica de todas, que seria
a mentira com o uso da estatística.
No Brasil essa arte de
produzir mentiras com o uso da estatística causa recorrentes prejuízos aos mais
pobres e enche as ancas de dinheiro de especuladores, de burocratas do setor público
e de agiotas do mercado financeiro. Exemplo disso é a pilhagem dos salários dos
trabalhadores brasileiros em plena época do milagre econômico. Não por acaso, as
greves do ABC do final da década de 1970 foram sobretudo uma resposta ao
documento do Banco Mundial que desmascarou a manipulação dos índices de inflação
pelo então Ministro da Economia, Delfim Netto. Delfim distorceu os índices de inflação,
de modo a ludibriar os trabalhadores, fazendo-os acreditar que o governo promovia
reajustes salariais justos.
A prática do ludibrio é
recorrente. Não faz muito tempo, o governo Temer determinou que o IBGE
alterasse a metodologia de cálculo do trabalho infantil e, em consequencia, sem
nenhuma política pública para o aludido segmento, conseguiu “reduzir” em quase
um milhão o número de trabalhadores infantis. Outro artifício de enrolação tem
sido o contrato de trabalho intermitente por meio do qual o trabalhador é
contratado, tem a sua carteira de trabalho assinada, passa a engordar as estatísticas
de emprego, mas não tem a garantia de recebimento do salário.
Enfim, para se evitar que os dados estatísticos sejam
utilizados como ferramenta para se produzir uma realidade fictícia, a
alternativa é se fortalecer uma suspeição epistemológica, que busque sobretudo valorizar a leitura do mundo vivido para conhecer e questionar o modo como os pesquisadores e institutos de pesquisa "apreendem" a realidade. Cuida-se, portanto, de uma urgência que consiste em se reconstruir uma ética do estranhamento capaz de possibilitar à sociedade refutar a distorção das estatísticas e inibir ou combater as mentiras estatísticas que negam ou escondem a realidade de sofrimento, exploração, crueldade, opressão, discriminação e negligência.
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