Vejam a instigante reportagem de Roberto
Almeida, algo para refletir sobre o nosso futuro (Operamundi, 19.02.2012).
Na “era da austeridade”, idosos britânicos
são as primeiras vítimas dos cortes de gastos. Sem orçamento, programa de
assistência social não supre mais as carência da terceira idade
Dos 2 milhões de idosos britânicos, 800 mil
estão "sozinhos, isolados e em risco"; visitas de assistentes sociais
não duram mais de 15 minutos
Símbolo máximo do estado de bem-estar social
do Reino Unido, o sistema de saúde britânico está em crise há pelo menos 10
anos. Sem perspectiva de aumento orçamentário acima da inflação para os
próximos quatro, e com a população envelhecendo, os resultados da política de
austeridade já estão batendo à porta dos idosos na ilha.
Um grupo de 60 especialistas ligado à área da
saúde pública, entre eles representantes da renomada Associação Médica
Britânica e da ONG AgeUK, enviou uma carta aberta à imprensa alertando o
primeiro-ministro conservador David Cameron para uma bomba-relógio. Há, segundo
os cálculos do grupo, 2 milhões de idosos no país. Destes, 800 mil estão "sozinhos,
isolados e em risco", sem apoio de serviços públicos ou privados.
No Reino Unido, as autoridades locais
(subprefeituras e prefeituras) têm obrigação legal de oferecer assistência a
pessoas em idade avançada e com diferentes níveis de risco, mas o sistema tem
privilegiado cada vez mais quem está em situações de necessidade extrema. Em
contrapartida, quem antes tinha direito a auxílio em casos considerados menos
graves agora não tem mais.
Elizabeth Feltoe, consultora de políticas
sociais da AgeUK, lembra que o Estado britânico já foi mais
"generoso". "Como as autoridades locais têm menos recursos, os
serviços estão sendo encolhidos, com mais cortes desde o ano passado",
afirmou ao Opera Mundi.
Por exemplo, as visitas de assistentes
sociais às casas dos idosos, que vivem sozinhos, não passa de 15 minutos (leia
mais abaixo). O máximo que os cuidadores conseguem fazer é esquentar comida e
ajudá-los a trocar de roupas - gerando frustração tanto dos profissionais da
área como dos idosos, que reclamam por serem "invisíveis" a quem
deveria lhes dar atenção.
Segundo Elizabeth, cada subprefeitura e
prefeitura tem autonomia para decidir o tamanho da fatia do orçamento dedicada
à assistência social e ao cuidado com idosos. No entanto, em paralelo ao aperto
nas contas, a decisão também acaba passando pela vontade política local. Como
resultado, o Reino Unido tem hoje áreas em que o auxílio aos idosos é
considerado satisfatório, enquanto em outros é problemático.
"É uma loteria do código postal",
conta Elizabeth, "em que dois idosos são vizinhos, mas podem receber
assistência em níveis bastante diferentes."
O premiê David Cameron, que mantém a retórica
da "era da austeridade" no Reino Unido, com previsão de mais cortes
pelos próximos três anos, preparou uma nova diretriz para o setor, que ainda
precisa de aprovação no Parlamento. As entidades esperam que o documento
simplifique e torne clara a legislação de acesso à assistência social no país.
"É preciso que o sistema seja
sustentável", afirma a consultora da AgeUK. "Se toda a legislação
sobre o assunto está separada em diferentes artigos, fica difícil para as
pessoas entenderem a que elas têm direito. Elas precisam de informação e
aconselhamento, porque se não planejarem antes e precisarem de assistência para
ontem, como no caso de um derrame, por exemplo, elas dificilmente vão conseguir
o que precisam."
The Big Society e a terceira idade
Três vizinhos de uma artista aposentada, que
será chamada de Sue nesta reportagem, se desesperaram no ano passado com a maneira
que ela, já idosa e com Alzheimer, foi tratada pelo governo. O relato ao Opera
Mundi foi feito sob condição de anonimato.
O caso ocorreu em Oxford, uma das cidades
mais ricas do Reino Unido. Sue, com cerca de 80 anos, morava sozinha e sem
apoio da família, que a abandonou. Acabou dependendo de seus vizinhos para
sobreviver e de visitas esporádicas do serviço social.
As visitas das assistentes sociais, segundo
relatos dos vizinhos, duravam apenas 10 minutos - o suficiente apenas para que
Sue tomasse seus remédios. Ela já mostrava seus primeiros sinais de Alzheimer.
Esquecia o nome das pessoas e colocava roupas de trás para frente e já não
podia mais fazer suas próprias compras.
Sem o devido apoio do Estado, que aplica
formulários de diagnóstico bastante criticados pela falta de detalhamento, Sue
foi "empurrada" para o conceito-chave do governo conservador de
Cameron: a chamada The Big Society, ou Grande Sociedade, uma construção da
campanha eleitoral que convoca os britânicos a buscar o voluntariado para tapar
os buracos deixados pela política de austeridade.
"O atendimento do governo não era nada
satisfatório. As assistentes sociais, que faziam rodízio, apareciam sem hora
marcada e algumas mal falavam inglês", contou uma das vizinhas, que riu ao
ser perguntada se o conceito de Big Society funcionava. "O Estado
terceiriza uma empresa, que paga salário mínimo para essas visitas apressadas.
O sistema é inflexível e fragmentado. No final das contas, ninguém assume a
responsabilidade quando alguma coisa dá errado e muito dinheiro é jogado
fora."
Depois de dois anos vivendo em condições
precárias, incapaz de cozinhar e dependendo da boa vontade dos vizinhos, Sue
tropeçou e caiu ao sair de casa. Foi levada a um hospital e, em seguida, a um
retiro do governo considerado pelos vizinhos "bastante impessoal".
"Ela foi tratada injustamente, sem qualquer qualidade de vida",
explicou uma das vizinhas. "No hospital e no retiro ela é ajudada
corretamente, mas por que nada foi feito antes, quando ela ainda estava em
casa?"
Os vizinhos fizeram uma reclamação formal ao
governo pelo tratamento dado a Sue. Os serviços não foram grátis. Quando ela
estava em casa, a idosa pagava 70 libras esterlinas por semana. Quando foi para
o hospital, seu tratamento custou mil libras por semana. E agora, no retiro,
ela paga 600 libras por mês, que saem de suas economias.
"Veja como não faz sentido. Se o
atendimento em casa fosse feito como deveria, ela poderia ter passado mais
tempo em casa e, certamente, não teria ido parar no hospital. O retiro era
inevitável - mas poderia ter sido adiado. E bastante dinheiro poderia ter sido
economizado", desabafou uma das vizinhas. Para ela, a Big Society de
Cameron pode até funcionar. Só com ajuda do governo.
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