Juiz da JT de Minas reconhece vínculo
entre Uber e motorista que atendia pelo aplicativo
Em decisão
proferida nesta segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017, o juiz da 33ª Vara
do Trabalho de Belo Horizonte, Márcio Toledo Gonçalves, reconheceu o
vínculo de emprego entre a empresa Uber do Brasil Tecnologia Ltda. e o
motorista Rodrigo Leonardo Silva Ferreira, credenciado pela empresa para
fazer transporte de passageiros, com a utilização do aplicativo Uber. Na
sentença, o magistrado concluiu que a empresa se apresenta no mundo do
marketing como uma plataforma de tecnologia, mas, considerados os fatos
objetivos de sua relação com os motoristas e clientes, caracteriza-se, na
verdade, como uma empresa de transportes. E, analisando um a um os
requisitos legais da relação de emprego, o julgador considerou presentes
todos eles. Além da obrigação de assinar a Carteira de Trabalho do
motorista, o Uber foi condenado a pagar ele horas extras, adicional
noturno, multa prevista na CLT, verbas rescisórias pelo rompimento do
contrato sem justa causa e restituição dos valores gastos com combustível e
também com a água e balas oferecidas aos passageiros.
Entenda o
caso - Na ação, o
motorista requereu a declaração de vínculo de emprego por todo o período em
que transportou passageiros na cidade de Belo Horizonte-MG com a utilização
do aplicativo Uber, além de verbas trabalhistas, rescisórias e restituição
das despesas com combustível e amenidades oferecidas aos clientes. Ele
disse que recebia salário-produção, isto é, comissões que variavam entre
R$4.000,00 a R$7.000,00 por mês. Em defesa, o Uber contestou a existência
dos requisitos para a formação do vínculo. Afirma que é empresa que explora
plataforma tecnológica que permite aos usuários do aplicativo solicitar,
junto a motoristas independentes, transporte individual privado. Nesse
caso, pela tese do Uber , foi o motorista quem a contratou para uma
prestação de serviço de captação e angariação de clientes. Sendo assim, o
motorista não recebeu nenhuma remuneração, mas, ao contrário, foi ele quem
remunerou o Uber pela utilização do aplicativo. Alegou ainda a inexistência
de habitualidade e não eventualidade na prestação de serviços, já que não
havia pré-fixação de dias e horários obrigatórios para que o motorista
ficasse à disposição nas ruas.
Ao analisar o
mérito da questão, o juiz chama a atenção para a chamada "uberização" das
relações de trabalho. De acordo com o magistrado, esse fenômeno preconiza
um novo modelo de organização do trabalho a partir dos avanços da
tecnologia, que interferem e desnaturam a tradicional relação
capital-trabalho. Para ele, a "uberização", embora
ainda se encontre em nichos específicos do mercado, tem potencial de se
generalizar para todos os setores da atividade econômica: "Não
podemos ignorar a importância dos avanços tecnólogicos na evolução das
relações laborais", pondera. Entretanto, acrescenta, "não
se pode perder de vista o papel histórico do Direito do Trabalho como um
conjunto de normas construtoras de uma mediação no âmbito do capitalismo e
que tem como objetivo constituir uma regulação do mercado de trabalho de
forma a preservar um 'patamar civilizatório mínimo' por meio da aplicação
de princípios, direitos fundamentais e estruturas normativas que visam
manter a dignidade do trabalhador". O contrário, segundo o
juiz, resultaria em "retrocesso civilizatório".
Para decidir o
caso, o magistrado aplicou o princípio da primazia da realidade sobre a
forma, ou seja, não importa o nome que as partes emprestam à relação, nem
mesmo documentos e contratos assinados nesse sentido, mas o que ela
representa, de fato, aos olhos do Direito. E, nessa análise dos fatos, ele
concluiu que a relação entre o motorista e o Uber tinha, na prática, todas
as características de uma relação de emprego. E passou a analisar, um por
um, os elementos que caracterizam o vínculo empregatício: pessoalidade,
habitualidade, remuneração e subordinação.
Requisitos
cumpridos - Quanto
à prestação de serviços com pessoalidade, ele considerou caracterizada, já
que, conforme confirmado por uma testemunha, o Uber exige prévio cadastro
pessoal de cada um dos seus a motoristas e o envio de diversos documentos
pessoais, como certificado de habilitação para exercer a função de condutor
remunerado, atestados de bons antecedentes e certidões "nada
consta". Observando que a empresa escolhia minunciosamente quem poderia
integrar ou não os seus quadros, o juiz considerou irrelevante o fato de o
motorista poder indicar outros condutores, também cadastrados, para dirigir
o seu veículo: "Trata-se apenas de uma expressão do poder
diretivo daquele que organiza, controla e regulamenta a prestação dos
serviços", ponderou, concluindo que o Uber mantém vínculo
personalíssimo com cada motorista que utiliza sua plataforma,
independentemente de este ser ou não o proprietário do veículo conduzido.
No quesito
remuneração, o juiz Márcio Toledo rejeitou a afirmação da ré de que era o
motorista quem a remunerava pela utilização da plataforma digital: "Primeiro
porque a prova dos autos evidencia que a ré conduzia, de forma exclusiva,
toda a política de pagamento do serviço prestado, seja em relação ao preço
cobrado por quilometragem rodada e tempo de viagem, seja quanto às formas
de pagamento ou às promoções e descontos para usuários. Não era dada ao
motorista a menor possibilidade de gerência do negócio, situação que não
ocorreria caso fosse o obreiro o responsável por remunerar a ré. Segundo
porque a reclamada não somente remunerava os motoristas pelo transporte
realizado, como também oferecia prêmios quando alcançadas condições
previamente estipuladas."
Uma testemunha
relatou que, ocasionalmente, o Uber pagava os motoristas para ficarem à
disposição para chamadas em algum ponto da cidade, onde desejavam fazer
expansão de mercado. Outro depoente relatou que a empresa garantia valores
mínimos de receita por hora, para determinados horários. Por seu turno, o
site da plataforma demonstra que ela remunera seus motoristas ainda que a
viagem seja gratuita ao usuário. Para completar, os demonstrativos de
pagamento juntados ao processo revelam que os pagamentos realizados pelos usuários
são feitos para a ré, que retira o seu percentual e retém o restante,
repassando-o aos motoristas somente ao final de cada semana. "Isso
demonstra que a reclamada não apenas faz a intermediação dos negócios entre
passageiros e condutores, mas, ao contr&aa cute;rio, recebe por cada
serviço realizado e, posteriormente, paga o trabalhador",
registrou o magistrado.
E mais: o
depoimento do ex-gerente geral da ré aponta como era feito o cálculo das
tarifas a serem cobradas, o que, para o juiz, demonstra que a Uber
estipulava, por via transversa, os salários dos motoristas. Informou a
testemunha "que o salário mínimo era calculado por hora, com
base em 44 horas semanais; que a remuneração do motorista era calculada
entre 1.2 e 1.4 salários mínimos, descontando todos os custos."
O terceiro
requisito, o da não-eventualidade, também foi considerado cumprido, já que
os motoristas cadastrados no aplicativo atendem à demanda intermitente
pelos serviços de transporte, trabalhando praticamente todos os dias, muito
embora nos horários à sua escolha. O juiz identificou uma "exigência
velada" de que os motoristas estejam em atividade de forma sistêmica.
Em depoimento ao Ministério Público do Trabalho da 1ª Região, o Sr. Saadi
Alves de Aquino, ex-coordenador de operações da ré, declarou que se o
motorista ficar mais de um mês sem pegar qualquer viagem, o mesmo seria
considerado inativo. Outra testemunha declarou que eram enviados e-mails
ameçando o motorista de exclusão da plataforma, caso não voltassem a
realizar corridas. Nesse ponto, o magistrado acrescento u que a não
eventualidade não é afastada pelo fato de o motorista ter flexibilidade na
fixação do seu horário de trabalho.
Submissão às
diretrizes da empresa - Por fim, o juiz confirma a existência no caso do elemento mais
importante para a caracterização do vínculo de emprego: a subordinação. A
chamada "subordinação estrutural" à empresa, no seu modo de ver,
é clara, uma vez que o motorista, estava inserido na dinâmica da
organização e prestando serviço indispensável aos fins da atividade
empresarial: o transporte de passageiros.
Mas, nesse
caso, o magistrado entendeu que até mesmo a subordinação clássica às ordens
diretas do empregador está presente: "O autor estava submisso
a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles
contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares
caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou
praticasse infrações das regras por ela estipuladas", pontuou.
Quanto ao modo
de produção e realização dos serviços, testemunhas revelaram que o Uber
realiza verdadeiro treinamento de pessoal sobre como tratar o cliente, como
abrir a porta, orientam para sempre ter água e bala dentro do carro, manter
o carro sempre limpo e com ar condicionado sempre ligado e até a exigência
de uso de terno e gravata para motoristas do Uber Black, o que o juiz
considerou como o exercício do poder diretivo do empregador.
Ao observar que
o controle do cumprimento dessas regras e dos padrões de atendimento
durante a prestação de serviços ocorre por meio das avaliações e
reclamações feitas pelos consumidores do serviço, o juiz alertou: "Somente
o avanço tecnológico da sociedade em rede foi capaz de criar essa inédita
técnica de vigilância da força de trabalho". Trata-se, segundo
ele, de um controle difuso, realizado pela multidão de usuários, e que se
traduz em algoritmos que definem se o motorista deve ou não ser punido,
deve ou não ser "descartado".
Diante de tudo
isso, o juiz considerou insustentável a alegação de que o Uber se constitui
apenas como empresa que fornece plataforma de mediação entre motorista e
seus clientes. "Caso fosse mesmo apenas uma empresa de
tecnologia a tendência era a cobrança de uma quantia fixa pela utilização
do aplicativo, deixando a cargo dos motoristas o ônus e bônus da captação
de clientes", fundamenta, concluindo que, ainda que a ré atue
também no desenvolvimento de tecnologias como meio de
operacionalização de seu negócio, essa qualificação não afasta o fato de ser
ela, sobretudo, uma empresa de transporte. Como reforço a essa conclusão,
ele aponta o fato de que já há julgados responsabilizando a empresa por
v&i acute;cios na prestação de serviços decorrentes de erros do
motorista na condução do veículo (ex. Proc. 0801635-32.2016.8.10.0013 do 8º
Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de São Luís/MA).
O magistrado
explicou que, no caso, a força de trabalho do motorista pertencia à
organização produtiva Uber, que exigia de 20 a 5% sobre o faturamento bruto
alcançado, enquanto, para o motorista, sobravam as despesas com
combustível, manutenção, depreciação do veículo, multas, avarias, lavagem,
água e impostos. "Tal circunstância evidencia que o autor não
alienava apenas o resultado, mas o próprio trabalho, ratificando, assim, a
dependência própria do regime de emprego", concluiu, enfatizando
que, para obter maior ganho financeiro, a ré tentou se esquivar da
legislação trabalhista "elaborando um método fragmentado de
exploração de mão-de-obra, acreditando que assim os profissi onais
contratados não seriam seus empregados". Nesse sentido, o próprio
gerente-geral da Uber informou que "a equipe da Uber recebia
treinamento sobre como se comunicar com público interno e externo, mais
especificamente para diminuir riscos de reconhecimento de vínculo
empregatício com os motoristas".
Condenação - Portanto, considerando presentes
todas as circunstâncias fático-probatórias que caracterizam o contrato de
trabalho, o magistrado julgou procedente o pedido para reconhecer o vínculo
empregatício entre as partes, determinando a anotação do contrato na CTPS
do motorista, no prazo de 05 dias a partir da intimação, sob pena de multa
diária de R$1.000,00. A remuneração deve ser fixada em 80% sobre o
faturamento das viagens, com admissão em 20/02/2015 e saída em 17/01/2016.
Foi também reconhecida a dispensa sem justa causa, sendo devidas verbas
rescisórias, como aviso prévio indenizado; 11/12 de férias proporcionais
com 1/3; 13ª salário proporcional de 2015 e 2016; FGTS com 40% de todo o
contrato e multa do art. 477, §8&or dm; da CLT.
O julgador
considerou clara a possibilidade de controle sobre a jornada do motorista,
já que a ré tem à sua disposição instrumentos tecnologicos que permitem o
monitoramento remoto do empregado: "O que se evidencia dos
autos é que o 'smartphone' do obreiro não era apenas ferramenta de
trabalho, mas também relógio de ponto altamente desenvolvido, verdadeiro
livro de registro das atividades realizadas", declarou, concluindo
que o motorista tem direito a jornada de trabalho legal. Como a ré não
levou ao processo os registros de jornada e nem fez prova em contrário, o
juiz aplicou o entendimento da Súmula 338, do TST, presumindo verdadeira a
jornada descrita pelo motorista na petição inicial. Mas, como o reclamante
era comissionista puro, a condenação f oi apenas de pagamento do adicional
sobre duas horas extras por dia de trabalho, com devidos reflexos.
A empresa foi
condenada ainda a pagar o adicional noturno, no percentual
de 20%, com relação ao trabalho executado entre as 22h e as 05h, e a
remunerar, em dobro, os feriados trabalhados. E ainda, como o
Direito do Trabalho veda a transferência do ônus da atividade econômica ao
empregado, o juiz condenou a Uber a ressarcir as despesas do empregado com
gasolina (fixadas em R$2.000,00 por mês) e mais R$100,00 mensais, a título
de gastos com água e bala oferecidas aos usuários durante as corridas.
Por fim, o juiz
determinou a expedição de ofício à SRT, ao Ministério Público do Trabalho,
ao INSS e à Receita Federal, uma vez constatada a prática de fraude à
legislação trabalhista e previdenciária. E ainda: diante da
constatação de que a empresa atua no ramo de transporte individual de
passageiros, determinou também expedição de ofício à Secretaria de Finanças
do Município de Belo Horizonte e a Secretaria de Estado de Fazenda do
Estado de Minas Gerais, para que esses órgãos tomem as providências que
entenderem cabíveis quanto a possíveis sonegações fiscais.
O valor da
condenação foi fixado, por estimativa, em R$30.000,00, mas o valor final a
ser recebido pelo motorista deverá ser apurado em cálculo de liquidação da
sentença. Da decisão ainda cabe recurso ao TRT-MG. (Texto:
Margarida Lages)
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